Ponha o motor pra funcionar
Dirija-se para a estrada
Em busca da aventura
Não Importa o que aconteça em nosso caminho
(tradução da primeira quadra de versos de “Born to be wild”, da banda Steppenwolf)
Não é que os moto clubes pareçam todos iguais; o fato é que eles seguem os mesmos cânones (padrões) de comportamento: motos iradas (em sua maioria, customs – o estilo das famosas Harley-Davidson), viagens pelo país todo, roupas de couro e metal ou de motivos militares, cerveja e rock n’ roll. Os simpatizantes nem sempre buscam a origem deste estilo de vida, como começou e porque é o que é hoje: eles simplesmente acham “muito louco” e pronto: quando vêem, estão dentro, acompanhando tudo.
Também, isto exigiria um esforço maior do que frear uma “viúva negra” a mais de 140 km/h. A história é longa e cheia de polêmicas e curiosidades. Uma das principais é que, apesar de o formato de MC ser essencialmente importado dos EUA, acredita-se, dentro de uma discussão ainda não encerrada, que o primeiro moto clube do mundo seja... BRASILEIRO!
O Moto Club do Brasil, fundado em 1927 na Rua Ceará, no Rio, é o ancestral do atual Moto Clube de Campos, o mais antigo moto clube brasileiro em atividade. Importou do primeiro, inclusive, a estrutura estatutária. O site http://www.motoclubdecampos.com.br/historia.htm menciona:
“Entre um lanche que desfrutavam e conversas animadas sobre um prazer comum, motocicletas, foi proposta pelo senhor Luiz Falcão a este grupo composto por outros seis amigos a criação de um centro motociclista que teria como objetivos organizar passeios recreativos, piqueniques e bailes (Afinal de contas estamos falando do início do século 20)”.
A aparência evolui; a essência permanece. Nos motoclubes atuais, os passeios recreativos viraram viagens com dias de duração, enquanto os piqueniques e bailes converteram-se nos mega-eventos com shows, campings e churrasco 0800.
Mas não significa que, no mundo, especialmente nos EUA, não houvessem surgido outras agremiações locais ou nacionais de motociclistas. Em 1903, alguns membros do New York Motorcycle Club viram a necessidade da criação de um comitê nacional para convergência de interesses e lutas por direitos específicos. Surgia assim a Federação Americana de Motociclistas – FAM, que teve como um dos membros mais notáveis George M. Hendee, um dos donos da histórica Indian Motorcycle Company.
Durante seus 16 anos de existência, a FAM manteve um número de membros sempre na casa dos milhares. Em 1915, eram 8.247. No entanto, com a 1ª Guerra Mundial, as elevadas baixas por morte, invalidez ou não-retorno à pátria fizeram a entidade fechar as portas em 1919. Os poucos interessados em dar continuidade à paixão por motos migraram para a M&ATA (Motorcycle and Aliied Trades Association), fundada em 1916. Organização de competições, viagens e festas era a praxe a associação. Desta, uma divisão de corredores ganhou tamanho e autonomia a ponto de se desmembrar e se transformar na AMA (American Motorcycle Association – Associação Americana de Motos) em 1924.
Excesso de exigências legais e formais e discriminação econômica (mesmo no período do crash de 29 e da grande depressão que se seguiria), entre outros fatores menores, fizeram com que muitos amantes de motos, sozinhos ou associados, não conseguissem se alinhar ou mesmo não fizessem questão do ingresso à AMA. Assim, Surgiam os outlaws (foras-da-lei) motorcycle clubs. Não que fossem associações “criminosas” – elas simplesmente não estavam alinhadas à AMA nem a reconheciam como entidade oficial. Com maiores liberdades de atuação e comportamento, este seria o modelo ancestral dos MC’s “de tradição” atuais.
O inaugurador desta linha de filosofia sobre 2 rodas foi o Cook Outlaws MC, inaugurado em 1936 e em atividade até hoje, renomeado como Outlaws MC. Como, ao longo de sua existência, mudou de nome e estrutura 2 vezes, não é considerado, segundo a AMA (a mesma entidade à qual o MC não se alinhou desde o início de sua existência), o motoclube mais antigo em atividade. A carta patente do título foi concedida ao Motormaids MC (é isto mesmo que você está pensando: um motoclube exclusivamente feminino), cuja integridade foi mantida desde a fundação em 1940.
Influência da 2ª Guerra Mundial
As incursões nos campos de batalha nos países do Eixo (Itália, Alemanha e Japão), quando exigiam uma rapidez similar à de um blitzkrieg, eram feitas por duplas de soldados (os brothers in arms) em motos. O livro de William L. Dulaney, Uma breve história dos Moto Clubes Americanos, explicita:
“Com o fim da 2ª guerra mundial, milhares de jovens regressaram para casa. Alguns combatentes haviam sido treinados para guiar motocicletas em plena guerra, especificamente Harleys e Indians. Outros, que não haviam trabalhado diretamente com motocicletas, eram levadas a andar nas mesmas para aliviar a pressão do conflito armado. Por fim, dificilmente se encontraria algum soldado americano que tenha participado da 2ª Guerra que não tenha guiado uma motocicleta. Um ponto é interessante destacar: Os homens que participavam de um pelotão, fossem eles fuzileiros navais, infantaria, reconhecimento etc., eram disciplinados a cuidar do seu parceiro do início ao fim dos combates. As constantes incursões de guerra altamente fatigantes desenvolveram um alto nível da interdependência nos membros de um pelotão. Durante os combates reais vivenciaram a morte lado a lado, bem como o gosto por matar o inimigo, entre outras atrocidades. Neste campo de vida e morte os homens transformaram-se em irmãos e muitos veteranos da 2ª guerra trouxeram esta irmandade para a vida civil. Muitos desses soldados não conseguiram suportar a transição do ambiente de guerra para a monotonia da existência civil, buscando, assim, outra forma de viver.”
Assim, surgiram sobreviventes da guerra portadores do ainda desconhecido estresse pós-traumático (PTSD – reconhecido como doença somente em 1980), viciados em adrenalina e totalmente inadaptados ao retorno à vida civil. Destaca Fernando Marchi, do Rotax MC, de Serra Negra – SP:
“A AMA logo percebeu que a guerra havia exposto muitos americanos às motocicletas e que os veteranos voltaram com experiências fantásticas em cima das Harley Davidson WA45, experiências estas que eles fariam tudo para continuar vivenciando. Ansiosa em manter estes novos motociclistas, a AMA passou a organizar competições, viagens e gincanas com um entusiasmo renovado. Entretanto, a guerra não é o exercício mais saudável para a mente de quem combate no front, e estes novos motociclistas farreavam muito mais que os motociclistas tradicionais. Sua rotina se resumia quase sempre a festas, disputas, bebedeiras e como era inevitável, algumas brigas. Talvez buscando retomar o tempo perdido. A população tolerava esses excessos porque os motociclistas tinham a seu favor o fato de terem defendido seu país na guerra, apesar de tudo isso estar sendo financiado pelas pensões do governo, o que posteriormente pesaria contra os veteranos, quando, saindo da depressão, a América tentava otimizar seus custos com o apelo ao apoio da população.”
Tal tolerância iria encerrar-se no famoso Incidente de Hollister, uma pequena cidade da Califórnia que recebeu, em 1947, uma competição da AMA que, devido a falhas de organização, resultou naquilo que a revista Life espalhou como “um cerco à cidade”. Alguns dos motociclistas participantes passaram a explorar toda a cidade e seus arredores (e não somente a área restrita ao evento) bebendo, tirando rachas, brigando, depredando patrimônios e cometendo atentados ao pudor. Hollister virou um mito na história do motociclismo americano, visto que a maioria das testemunhas oculares do evento já faleceu e mesmo os testemunhos dados anteriormente são atualmente considerados “imparciais”. Também há registros de que a cidade já tenha abrigado pacificamente outros eventos de motociclismo, como a famosa Gypsy Tour, em 1936.
O evento de 1947 ficou eternizado no imaginário da população americana através do filme "O selvagem" (The Wild One, 1953), com Marlon Brando no papel do líder de gangue Johnny Stabler. Note-se que o emblema da jaqueta do rebelde (similar à uma bandeira de pirata, com uma caveira, mas com dois pistões no lugar dos dois ossos cruzados), influenciou a criação do emblema do Outlaws MC, o qual anteriormente tinha como uniforme apenas um suéter com o nome do MC costurado. Hoje, Hollister aproveita o mito para fins turísticos e recreativos de forma pacífica. Tanto que, em 1997, diversos motociclistas se dirigiram para lá para comemorar os 50 anos do incidente. Novamente, a cidade não teve estrutura para abrigar ou suportar a legião incontável de motociclistas.
Uma hipotética (porque nunca concretamente exibida) nota da AMA à revista LIFE, em resposta ao artigo desta que supervalorizava o incidente de Hollister, na qual era desmentida a participação da associação no evento e se afirmava que “99% dos motociclistas dos motociclistas eram pessoas de bem, cidadãos cumpridores da lei, e que os clubes de motociclistas da AMA não estiveram envolvidos na baderna”, além da nota do editor do periódico Motorcyclist, Paul Brokaw, que falava: “Nós reconhecemos, lamentavelmente, que houve uma desordem em Hollister – não ato de 4.000 motociclistas, mas de um por cento desse número, ajudada por um grupo de não motociclistas apostadores. Nós, de forma alguma, estamos defendendo os culpados – de fato é necessária uma ação drástica para evitar o retorno de tais comportamentos”, foram determinantes na formação da opinião pública americana sobre o motoclubismo: na grande maioria, a vilanização. Tanto que é por conta da vinculação das Harleys e Indians a Hollister e à guerra que começam a entrar no mercado as motonetas “bata-bata” descoladas e “inofensivas” de Soichiro Honda, que iriam mudar para sempre o uso comercial e cotidiano das motocicletas nos EUA.

No meio dessa confusão surgem os motoclubes 1%. Eles emergem em uma escala nacional tendo como suporte o surgimento dos Outlaw Motorcycle Clubs. Para concretizar este nascimento, os clubes dominantes da época foram além. Observando a declaração atribuída a AMA (de que os arruaceiros eram apenas 1%), buscaram para si a responsabilidade de fazer parte daquele 1% que foi apontado em Hollister. Assim, criaram a organização sem regras explícitas, não alinhada a AMA, ou seja, assumidamente Outlaw Motorcycle Club e passaram a se identificar por meio de um emblema em forma de diamante com a inscrição 1%. Concordaram também em estabelecer limites geográficos ao qual cada MC teria domínio.
Um ponto significativo na evolução dos motoclubes 1% se evidenciou no verão de 1964 na Califórnia. Nesta época, dois membros do Oakland Hells Angels Motorcycle Club foram presos e acusados de terem estuprado duas mulheres em Monterey, no entanto, pouco tempo depois foram liberados, devido a insuficiência de provas. Esse episódio foi à desculpa que faltava para que o governo do estado da Califórnia voltasse os olhos para os outlaw motorcycle clubs. Ainda em 1964, o senador Fred Farr exigiu uma investigação imediata sobre os estas organizações, encargo que ficou sob a responsabilidade do general Thomas C. Lynch.
Duas semanas mais tarde iniciaram-se as investigações. No ano seguinte, o General Lynch liberou ao público um relatório que esmiuçava as atividades dos "outlaw motorcycle clubs" tais como os Hells Angels. O relatório de Lynch pode ser considerado como a primeira tentativa de se classificar os clubes de motocicleta como um perigo para a comunidade e para o estado, entretanto, se resumiu em afirmar que essas organizações possivelmente cometiam crimes como sedução de jovens inocentes, estupro e pilhagem em pequenas cidades. O relatório foi largamente contestado, até mesmo dentro das organizações do estado. A imprensa, no entanto, percebendo que a história dos Outlaw Motorcycle Clubs vendia bem passou a publicar diuturnamente o lado negativo dessa organização. Talvez Andrew Syder seja o que melhor esboçou o efeito do relatório de Lynch. Segundo ele, o relatório moldou o conceito de motoclube na opinião do cidadão americano de forma negativa. Essa afirmação pode ser compreendida quando se observa os noticiários da época e ainda os dos tempos atuais. Nada, ou pouco mudou.
Os motoclubes ainda são a melhor forma de expressar o motociclismo estradeiro, mas é bom lembrar que todas as corridas que hoje vemos mundo afora começaram com eventos promovidos pela AMA-USA. Tais eventos foram os precursores de tudo o que vem a ser o mercado de motos hoje. Os motoclubes podem até perder o seu pique de crescimento, mas nunca vão perder o glamour.
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